segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Tal pai, tal filho!



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 por Elson Martins   



14-Nov-2009
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almanacre15_de_nov3.jpgO pai, José Marques de Souza, de apelido Matias, foi gerado nas brenhas do seringal Restauração, no rio Tarauacá. Ainda moço, mas seringueiro feito, além de mateiro e caçador, despregou-se na direção do rio Muru, na mesma região, e lá montou a colocação onde casou e se tornou homem de muitas habilidades: construiu casas e canoas, criou animais domésticos, abriu roçados. Sem descuidar dos mistérios e superstições da floresta que conhecia como poucos. 
Sim, era analfabeto, mas fluente nos argumentos, sobretudo, quando se referia às injustiças que prosperavam no comércio da borracha. A regra que levava o patrão seringalista a enganar os trabalhadores no peso da borracha e no preço do aviamento, com ele não vingou. Ou vingou só o tempo dele conhecer a história do seringueiro Manoel Falado, do seringal Alagoas, que sublevou outros extrativistas forçando o patrão a rever as contas tendo e pagar o saldo de todo mundo. E olha que eram 500 seringueiros sublevados!

Matias foi nesse rumo: na hora certa, juntou o que tinha na colocação, acertou as contas no barracão e desceu com a família para a cidade de Tarauacá, querendo educação para os filhos. Mas a cidade, uma novidade sobre a qual ouvia falar tanta vantagem na Rádio Nacional de Brasília ainda não podia ser aquela, onde só encontrava humilhação. Mesmo assim seguiu em frente, em 1969 veio com mulher e filhos para Rio Branco.
Ah! Aqueles tempos não eram propícios para os pobres da Amazônia, nem na floresta nem na cidade. O país era governado por militares golpistas que aprovavam a idéia de transformar os seringais em grandes fazendas. No vale do Acre, muitas famílias que nem a dele, expropriadas, migravam para a capital.
O Matias seringueiro se transformaria logo: em membro de comunidade de base da Prelazia do Acre e Purus, ativista político que ajudava na ocupação de terrenos urbanos para garantir um teto para os sem tetos e, até, em teatrólogo talentoso, um artista capaz de escrever, montar e representar peças denunciando os maus hábitos dos novos donos do Acre - inimigos da floresta recém-chegados do Oeste, Sul e Sudeste para derrubar a mata, plantar capim e criar boi.

Em 1997, aos 56 anos, ele morreu deixando para os acreanos nascidos e de coração um legado de resistência em defesa das tradições locais e do amor às artes. Deixou o Teatro Barracão na estrada da Sobral, recentemente recuperado pelo Governo do Estado; muitas peças mal escritas, mas vigorosas, com as quais deu força às famílias desarrumadas que formarem bairros como Aeroporto Velho, Triângulo Novo, Bahia, Palheiral e João Eduardo, entre outros.
Sua família era um grupo teatral completo. A mulher, Maria Ferreira de Souza (faleceu agora, dia 28), as duas filhas meninas e os cinco filhos homens participavam das dramatizações na rua, na praça, no tablado, sob a direção do autor talentoso e revolucionário. Mas na atividade permaneceu apenas o filho mais novo, Murande, hoje com 20 anos, quebrando lanças com o grupo “De Olho na Coisa”.

Mas o “tal filho” a que me refiro no titulo acima é o segundo mais velho, Moisés Matias, que encheu o auditório da Biblioteca da Floresta na quinta-feira ao apresentar sua proposta do Sítio Ecológico, experiência alternativa de vida que carrega com unhas e dentes, há 25 anos no Maranhão. Formado em jornalismo, com longa prática na área ambientalista, ele tem a mesma fala mansa e o olhar de melancolia do pai, que significam, parece,: inquietude e busca permanente de uma vida em harmonia com a natureza. Seu livro (já escreveu e publicou outros quatro) procura mostrar aos apressados homens e mulheres do século XXI que a qualidade de vida não pode estar impressa em dólares, com regras estúpidas de mercado e acumulação de riqueza.

      A palestra teve boa acolhida, mas, novamente assemelhado ao pai, Moises esqueceu de anunciar que o livro estava à venda em versão digital, a 20 reais por CD;  e que hoje, domingo, ele permanecerá o dia todo no sítio da Carol (restaurante localizado na estrada do Quinari) fazendo demonstrações de como é possível criar um “sitio ecológico” em pequenos espaços, para cultivar frutos, hortaliças e bons hábitos, tanto alimentares quanto no relacionamento entre pessoas e o ambiente. O “sítio” pode se desenvolver até dentro de casa, na varanda ou na cozinha. Ou, ainda, simplesmente na consciência de cada um. (Veja trecho no espaço ao lado).

Conspiração ecológica

Moisés Matias

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Certa vez, em uma palestra sobre turismo ecológico para um grupo de índios do Maranhão, manifestei a alegria que sentia em falar para os representantes dos povos guardiões de grandes tradições da Humanidade. Contei que sou um pouco índio, uma vez que a minha avó paterna fora descendente de uma nação que vive no Vale do Juruá1 no Estado do Acre. Após a palestra um chefe da nação Guajajara perguntou:
“Qual é o seu tronco lingüístico?”.

Demorei a entender a pergunta. O chefe Guajajara completou:
“Qual o nome do seu povo, a língua que ele fala?”.
Não soube responder. Aquele chefe pronunciava com dificuldade as palavras em português, mas poderia dizer, inclusive, se tenho algum parentesco com a nação Guajajara.

Descobri assim que sabia pouco sobre a história da minha gente. Passei então a estudar as minhas origens, a tentar descobrir quem sou, de onde venho. Ainda sei pouco sobre as coisas, a terra onde nasci e o mundo onde vivo.
A humanidade existe sobre a terra há aproximadamente quatro milhões de anos, mas nós que nascemos no leito da cultura ocidental, mesmo carregando sangue indígena ou africano nas veias, ignoramos o saber ainda preservado das grandes tradições da humanidade.
Nós nos afastamos do saber das grandes tradições, assim como nos desligamos do meio onde vivemos. “O pé não sente mais o macio da grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura”, (BOFF. p. 90. 1999). Construímos prédios que são verdadeiras fortalezas; fazemos naves espaciais para explorar o universo, entre outros avanços, mas seguimos uma vida na maioria das vezes alheia ao vento que passa carregando aves, ao tempo em sua rotina de noite com lua e dias com sol e chuvas.

O depoimento de um dos maiores educadores do Brasil, Moacir Gadotti, no Livro Pedagogia da Terra, mostra o tamanho do fosso que separa a humanidade da natureza. “Nunca tive na escola a oportunidade de plantar uma árvore, de colher os legumes de uma horta, de chupar deliciosamente uma manga colhida do jardim da escola.”.  (GADOTTI, p12, 2000).

O mundo moderno faz uma permanente negação da natureza. Em praticamente todos os campos do conhecimento a natureza é vista como algo distante. Dizemos que “é preciso preservar a natureza”, não que “é preciso que nos salvemos”.

Nós somos parte indissociável do que chamamos de natureza. A maioria das escolas, inclusive, trata o tema natureza como uma externalidade, lembrado nas datas comemorativas. “Cresce a consciência de que a natureza funciona, não só como despensa ou almoxarifado, mas como quarto de despejo, lata de lixo e esgoto, para onde são jogados os detritos, dejetos e rejeitos, tanto os da produção como os do consumo”. (MENDES. p 17. 1993).
A visão subjetiva de mundo que trazemos nem sempre segue os preceitos da sociedade convencional, com seus códigos e certezas. Pelo menos no Norte e Nordeste do Brasil ainda há um conteúdo que vem da origem rural e se manifesta nas hortas e jardins das casas, na tradição de se criar animais domésticos, na manutenção de enredos, brincadeiras tradicionais e da literatura focada no tema rural.

Em alguns casos, a natureza subjetiva consegue se fazer ouvir, inclusive em sonhos, e nos faz, por exemplo, percorrer o caminho em busca de uma vida sustentável. Nesta nova imersão, levamos na bagagem parte daquilo que conseguimos construir, social e culturalmente, ao longo dos séculos.
A experiência humana nos levou ao paradoxo da existência. Como podemos sobreviver no planeta terra sem causar danos às criaturas e ao meio ambiente? Este é o maior enigma que enfrentamos na atualidade. A aventura maior do projeto humano, a mudança da rota da destruição para a rota da civilização sustentável. “Uma nova forma de civilização, fundamentada no aproveitamento sustentável dos recursos renováveis, não é apenas possível, mas essencial”. (SACHS, p.29. 2002).
Não se trata de um retorno à natureza, como quem volta à idade da pedra, mas de um reencontro de um ser cultural, dotado de conhecimentos e vivências, com uma natureza que é nosso berço. É esta simbiose que torna possível a vivência na natureza, a garantia de uma vida com qualidade para todas as criaturas.

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Elson Martins é jornalista acreano. Como repórter regional de O Estado de São Paulo, acompanhou a partir 1975 aprimeira fase dos conflitos pela terra no Acre, ajudando a colocar Chico Mendes na mídia local e nacional. Foi um dos editores do jornal alternativo Varadouro, que tomou partido da luta dos seringueiros, índios e posseiros a partir de 1978. E-mail para contato: elson-martins@uol.com.br. Artigo publicado em 17/11/2009. 

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