por Elson Martins | |
14-Nov-2009 | |
O pai, José Marques de Souza, de apelido Matias, foi gerado nas brenhas do seringal Restauração, no rio Tarauacá. Ainda moço, mas seringueiro feito, além de mateiro e caçador, despregou-se na direção do rio Muru, na mesma região, e lá montou a colocação onde casou e se tornou homem de muitas habilidades: construiu casas e canoas, criou animais domésticos, abriu roçados. Sem descuidar dos mistérios e superstições da floresta que conhecia como poucos.
Sim, era analfabeto, mas fluente nos argumentos, sobretudo, quando se referia às injustiças que prosperavam no comércio da borracha. A regra que levava o patrão seringalista a enganar os trabalhadores no peso da borracha e no preço do aviamento, com ele não vingou. Ou vingou só o tempo dele conhecer a história do seringueiro Manoel Falado, do seringal Alagoas, que sublevou outros extrativistas forçando o patrão a rever as contas tendo e pagar o saldo de todo mundo. E olha que eram 500 seringueiros sublevados!
Matias foi nesse rumo: na hora certa, juntou o que tinha na colocação, acertou as contas no barracão e desceu com a família para a cidade de Tarauacá, querendo educação para os filhos. Mas a cidade, uma novidade sobre a qual ouvia falar tanta vantagem na Rádio Nacional de Brasília ainda não podia ser aquela, onde só encontrava humilhação. Mesmo assim seguiu em frente, em 1969 veio com mulher e filhos para Rio Branco.
Ah! Aqueles tempos não eram propícios para os pobres da Amazônia, nem na floresta nem na cidade. O país era governado por militares golpistas que aprovavam a idéia de transformar os seringais em grandes fazendas. No vale do Acre, muitas famílias que nem a dele, expropriadas, migravam para a capital.
O Matias seringueiro se transformaria logo: em membro de comunidade de base da Prelazia do Acre e Purus, ativista político que ajudava na ocupação de terrenos urbanos para garantir um teto para os sem tetos e, até, em teatrólogo talentoso, um artista capaz de escrever, montar e representar peças denunciando os maus hábitos dos novos donos do Acre - inimigos da floresta recém-chegados do Oeste, Sul e Sudeste para derrubar a mata, plantar capim e criar boi.
Em 1997, aos 56 anos, ele morreu deixando para os acreanos nascidos e de coração um legado de resistência em defesa das tradições locais e do amor às artes. Deixou o Teatro Barracão na estrada da Sobral, recentemente recuperado pelo Governo do Estado; muitas peças mal escritas, mas vigorosas, com as quais deu força às famílias desarrumadas que formarem bairros como Aeroporto Velho, Triângulo Novo, Bahia, Palheiral e João Eduardo, entre outros.
Sua família era um grupo teatral completo. A mulher, Maria Ferreira de Souza (faleceu agora, dia 28), as duas filhas meninas e os cinco filhos homens participavam das dramatizações na rua, na praça, no tablado, sob a direção do autor talentoso e revolucionário. Mas na atividade permaneceu apenas o filho mais novo, Murande, hoje com 20 anos, quebrando lanças com o grupo “De Olho na Coisa”.
Mas o “tal filho” a que me refiro no titulo acima é o segundo mais velho, Moisés Matias, que encheu o auditório da Biblioteca da Floresta na quinta-feira ao apresentar sua proposta do Sítio Ecológico, experiência alternativa de vida que carrega com unhas e dentes, há 25 anos no Maranhão. Formado em jornalismo, com longa prática na área ambientalista, ele tem a mesma fala mansa e o olhar de melancolia do pai, que significam, parece,: inquietude e busca permanente de uma vida em harmonia com a natureza. Seu livro (já escreveu e publicou outros quatro) procura mostrar aos apressados homens e mulheres do século XXI que a qualidade de vida não pode estar impressa em dólares, com regras estúpidas de mercado e acumulação de riqueza.
A palestra teve boa acolhida, mas, novamente assemelhado ao pai, Moises esqueceu de anunciar que o livro estava à venda em versão digital, a 20 reais por CD; e que hoje, domingo, ele permanecerá o dia todo no sítio da Carol (restaurante localizado na estrada do Quinari) fazendo demonstrações de como é possível criar um “sitio ecológico” em pequenos espaços, para cultivar frutos, hortaliças e bons hábitos, tanto alimentares quanto no relacionamento entre pessoas e o ambiente. O “sítio” pode se desenvolver até dentro de casa, na varanda ou na cozinha. Ou, ainda, simplesmente na consciência de cada um. (Veja trecho no espaço ao lado).
Conspiração ecológica
Certa vez, em uma palestra sobre turismo ecológico para um grupo de índios do Maranhão, manifestei a alegria que sentia em falar para os representantes dos povos guardiões de grandes tradições da Humanidade. Contei que sou um pouco índio, uma vez que a minha avó paterna fora descendente de uma nação que vive no Vale do Juruá1 no Estado do Acre. Após a palestra um chefe da nação Guajajara perguntou:
“Qual é o seu tronco lingüístico?”.
Demorei a entender a pergunta. O chefe Guajajara completou:
“Qual o nome do seu povo, a língua que ele fala?”.
Não soube responder. Aquele chefe pronunciava com dificuldade as palavras em português, mas poderia dizer, inclusive, se tenho algum parentesco com a nação Guajajara.
Descobri assim que sabia pouco sobre a história da minha gente. Passei então a estudar as minhas origens, a tentar descobrir quem sou, de onde venho. Ainda sei pouco sobre as coisas, a terra onde nasci e o mundo onde vivo.
A humanidade existe sobre a terra há aproximadamente quatro milhões de anos, mas nós que nascemos no leito da cultura ocidental, mesmo carregando sangue indígena ou africano nas veias, ignoramos o saber ainda preservado das grandes tradições da humanidade.
Nós nos afastamos do saber das grandes tradições, assim como nos desligamos do meio onde vivemos. “O pé não sente mais o macio da grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura”, (BOFF. p. 90. 1999). Construímos prédios que são verdadeiras fortalezas; fazemos naves espaciais para explorar o universo, entre outros avanços, mas seguimos uma vida na maioria das vezes alheia ao vento que passa carregando aves, ao tempo em sua rotina de noite com lua e dias com sol e chuvas.
O depoimento de um dos maiores educadores do Brasil, Moacir Gadotti, no Livro Pedagogia da Terra, mostra o tamanho do fosso que separa a humanidade da natureza. “Nunca tive na escola a oportunidade de plantar uma árvore, de colher os legumes de uma horta, de chupar deliciosamente uma manga colhida do jardim da escola.”. (GADOTTI, p12, 2000).
O mundo moderno faz uma permanente negação da natureza. Em praticamente todos os campos do conhecimento a natureza é vista como algo distante. Dizemos que “é preciso preservar a natureza”, não que “é preciso que nos salvemos”.
Nós somos parte indissociável do que chamamos de natureza. A maioria das escolas, inclusive, trata o tema natureza como uma externalidade, lembrado nas datas comemorativas. “Cresce a consciência de que a natureza funciona, não só como despensa ou almoxarifado, mas como quarto de despejo, lata de lixo e esgoto, para onde são jogados os detritos, dejetos e rejeitos, tanto os da produção como os do consumo”. (MENDES. p 17. 1993).
A visão subjetiva de mundo que trazemos nem sempre segue os preceitos da sociedade convencional, com seus códigos e certezas. Pelo menos no Norte e Nordeste do Brasil ainda há um conteúdo que vem da origem rural e se manifesta nas hortas e jardins das casas, na tradição de se criar animais domésticos, na manutenção de enredos, brincadeiras tradicionais e da literatura focada no tema rural.
Em alguns casos, a natureza subjetiva consegue se fazer ouvir, inclusive em sonhos, e nos faz, por exemplo, percorrer o caminho em busca de uma vida sustentável. Nesta nova imersão, levamos na bagagem parte daquilo que conseguimos construir, social e culturalmente, ao longo dos séculos.
A experiência humana nos levou ao paradoxo da existência. Como podemos sobreviver no planeta terra sem causar danos às criaturas e ao meio ambiente? Este é o maior enigma que enfrentamos na atualidade. A aventura maior do projeto humano, a mudança da rota da destruição para a rota da civilização sustentável. “Uma nova forma de civilização, fundamentada no aproveitamento sustentável dos recursos renováveis, não é apenas possível, mas essencial”. (SACHS, p.29. 2002).
Não se trata de um retorno à natureza, como quem volta à idade da pedra, mas de um reencontro de um ser cultural, dotado de conhecimentos e vivências, com uma natureza que é nosso berço. É esta simbiose que torna possível a vivência na natureza, a garantia de uma vida com qualidade para todas as criaturas.
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Elson Martins é jornalista acreano. Como repórter regional de O Estado de São Paulo, acompanhou a partir
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Blog sobre o seringueiro, lider social e teatrólogo acreano José Marques de Sousa, o Matias.
segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
Tal pai, tal filho!
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