Na primeira de minhas andanças com o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), conheci Matias, um dos participantes da Oficina que orientei então(Rio Branco (Acre), idos de 1993). Seringueiro e ativista cultural, figura marcante pela simplicidade, irradiou poesia e iluminou meu trabalho naquele Encontro. Mas eu nem imaginava a importância dele para aquela região. Relembrando-o, agora, busquei mais informações com Francisco Gregório Filho, companheiro do PROLER, que também conheci naquela ocasião – professor de Artes Cênicas, escritor, contador de histórias, fazedor de pipas, que agora também inova assumindo a primeira Secretaria de Leitura do Brasil (Nova Friburgo-RJ). Ambos são poetas acrianos inesquecíveis, juntos no texto que afavelmente me enviou Gregório. (MHM)
José Marques de Sousa, o Matias, seringueiro e ativista cultural fez uma trajetória longa e diversificada, dos seringais do Vale do Juruá até sua participação em movimentos sociais, em Rio Branco (Acre), como teatrólogo. Utilizava o teatro para denunciar e reivindicar melhores condições de vida para as comunidades menos favorecidas. Homem seringueiro – castanheiro, extrativista – década de 1970 – Rio Branco – Acre. Matias e sua família, já moradores da “periferia”, baixada, Aeroporto Velho, Baía, Palheral, bairros de invasão. De ex-seringueiros, expulsos dos seringais pelos fazendeiros e seus jagunços. Conflitos das terras adquiridas por esses fazendeiros do sul do país dos antigos seringalistas. Transações consideradas “empreendimentos” e receberam incentivos do governo federal, a partir do governo Médici: ocupação da Amazônia.
Pois bem, minha querida professora Maria Helena Martins, nessa década de 1970 é que fui conhecer aquele homem forte, falante, com expressão larga, pele queimada do sol e com alguns dentes quebrados e outros já extraídos da boca, sob um pequeno bigode de fiapos de cabelos desalinhados. Matias gostava de andar pelas ruas dos bairros e muitas vezes pelo centro da cidade sem camisa ou de camisa aberta no peito.Suava muito, vivia ensopado de suor. Demonstrava uma luta cotidiana para conseguir o “feijão com arroz” para alimentar os filhos. Os pés sempre enfiados naquelas sandálias de dedo ou em alpargatas.
Uma fala mansa, macia, mas quando precisava, projetava-a de forma vigorosa. Conheci Matias numa sessão do Cineclube Aquiry, com o Programa Circuito nos bairros, projetando o filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro de Graciliano Ramos. Durante o debate ouvi a voz contundente daquele homem que parecia personagem de filme. Fiquei comovido com aquela imagem e aquele discurso vibrante, duro e esperançoso. Um homem pós-alfabetizado e leitor de mundos (dos humanos e suas lutas sociais, políticas e culturais).
Convidei o Matias para almoçar comigo no dia seguinte. Almoçamos um prato-feito no Mercado Velho de Rio Branco, na pensão de dona Nazira: Feijão, arroz, farinha e cozido de costela de boi com jerimum. Soube então que Matias queria desenvolver com seus vizinhos as chamadas “dramatizações”. Já elaborava algumas cenas na cabeça sobre fatos ocorridos recentemente com as famílias moradoras daqueles bairros.
À época (1976 a1979) eu dirigia no Acre o Departamento de Assuntos Culturais – DAC e ainda produzia dois programas de rádio, o Perfil Contemporâneo, na radio Difusora Acreana e Momento Experiência, na Rádio Novo Andirá. Logo o convidei para participar dos programas e a assistir a espetáculos de teatro do Grupo Ensaio, nos quais eu fui diretor e ator.
Matias esboçava já em folhas soltas de papel a escrita de algumas cenas das dramatizações sobre o esforço de muitos pela sobrevivência e participação político-social. Naqueles anos eu também escrevia, de uma maneira muito simples, algumas peças de teatro sobre temas relativos às lutas sociais. Escrevia e promovia umas leituras para grupos de jovens das igrejas católicas, engajados na Teologia da Libertação e nós chamávamos de Pastoral da Juventude da Prelazia do Acre que tinha a coordenação do Bispo Dom Moacir Grecci.
Matias também participava dessas leituras e debates. Era também chamado por nós de Baia, mas até hoje não tenho muita clareza sobre o porquê do apelido. Nesse período, na segunda metade da década de 1970, recebemos em Rio Branco a visita Aldomar Corrado, professor de teatro, da Escola de Teatro da FEFIERJ, do Rio de Janeiro. O professor e dramaturgo, que naquele período, era assessor do Serviço Nacional de Teatro (SNT) foi comigo assistir ao espetáculo do Grupo das Dramatizações do Matias, que se apresentava num espaço comunitário do bairro Aeroporto Velho. Naquele espetáculo o grupo encenava a morte de um rapaz pela polícia, fato real, ocorrido há alguns dias atrás. Matias conseguiu que a mãe do rapaz morto subisse ao palco para interpretar sua própria personagem. Coisa de doido. Fulminante. Emoção Pura. Depois o debate corria até tarde da noite de forma vibrante. Tempos depois o professor Aldomar escrevia sobre aquela experiência numa revista de teatro da SBAT (Sociedade Brasileira de Teatro) e em relatórios do SNT. Ganhou repercussão nacional quando foram publicados.
Matias criou então o grupo de teatro “De olho na coisa” que participou do Teatro Barracão, da Federação de teatro Amador do Acre e do movimento de teatro amador brasileiro.
Professora Maria Helena, assim lembro de Matias, poeta, dramaturgo, encenador, militante cultural e grande guerreiro das causas sociais e artístico-culturais do Acre.
Depois, lá pelos anos de 1987, quando fui presidente da Fundação de Cultura do Estado, chamei o Matias para participar da minha equipe e ele dirigiu e coordenou as atividades do Teatro Barracão.
Essas são minhas lembranças, por ora, desse homem criador e produtor cultural. Lembranças muito associadas à minha própria história de vida e trabalho. No início dos anos 1990, com o Programa Nacional de Incentivo à leitura – Proler, da Biblioteca Nacional, do Ministério da Cultura, reencontrei Matias durante a programação de um seminário de leitura do qual você, professora querida, participava, ministrando uma oficina de leitura e memória. Matias participou de sua oficina, não foi? É isso mesmo?
Bom, você vai saber lembrar melhor do que eu, sim?
Matias fez a passagem dele. Fica conosco essa memória desse brasileiro, artista, inventivo, crítico, protagonista de belas histórias para se contar e preservar. Quando encontrá-lo novamente vou pedir a benção e cantar como cantávamos juntos:
”mandei caiar minha casa
Mandei... mandei... mandei...
Mandei caiar de amarelo
Caiei... caiei... caiei...”
Francisco Gregório Filho
- Rio de Janeiro, fev/2010